sexta-feira, 1 de novembro de 2013

REMINISCÊNCIAS DA RUA PRINCESA ISABEL – A SAGA DE FLORIANO - EL BODEGUERO – III



...Aquele lado do balcão era o seu mundo. Desde tenra idade já frequentava esse espaço ajudando Dona Sofia, sua genitora e primeira proprietária da bodega, no atendimento a clientela. Não precisava de grande locomoção no seu labor diário, visto ser a bodega o prolongamento de sua residência que tinha frente voltada para a Rua Apodi n° 160.

Impávido atrás do balcão e pronto a atender aos pedidos dos mais variados e exigentes clientes, estava Floriano. Conheci-o com aspecto idoso no final da década de 60, muito embora ainda não tivesse completado 60 anos, visto ser nascido em 1910. Estatura mediana, tez muito alva em contraste com os óculos extremamente escuros que raramente era retirado da face. 

Floriano vestia sempre uma camisa branca, tipo “slack”, que cobria, entretanto não escondia uma preponderante barriga que lhe dava uma aparência patriarcal. No bolso da camisa, presa pela haste, uma caneta tinteiro utilizada para registrar o “fiado”, em um desgastado caderno de arame, velho e sebento, mas, que somente ele sabia decifrar suas anotações. Para localizar o cliente após as compras, metia o indicador por cima da língua e com movimentos cadenciados passava, página a página, até localizar o nome do indivíduo, na primeira linha, num verdadeiro ritual diário. A anotação era feita na presença do cliente com o valor da mercadoria e o dia da aquisição. O pagamento do “fiado”, ou “conta na caderneta” era prometido para todo final de cada mês. Caso isso não acontecesse, Floriano dava um jeito de mandar um recado ao devedor. Se esse não surtisse efeito, as compras ficavam suspensas até a total liquidação do débito ou uma possível negociação que exigia inclusive a presença física do devedor. Dona Anita, proprietária da Pensão Caicó era uma das suas habituais freguesas. Sempre que se aproximava o final do mês e a dispensa de mantimentos ficava mais vazia, era na bodega de Floriano que ia em busca de socorro.  

De vez em quando, o bodegueiro sacava do bolso um lenço encardido que mais parecia uma toalha de rosto e levantando um pouco os óculos enxugava os olhos. Sofria com a claridade. Um de seus olhos, além de não enxergar atacado por catarata, lacrimejava em excesso que o obrigava a essas constantes intervenções. O mesmo lenço também utilizava para enxugar o lábio inferior em constante salivação.

Compunha ainda sua indumentária calça preta protegida por um avental amarelado e desgastado pelo uso, preso as costas por duas tiras de pano terminadas em um nó. Uma escura mancha horizontal marcava no avental exatamente a altura do balcão, devido ao constante atrito com o mesmo, no vai e vem do atendimento diário. Nos pés, surrados chinelos de rabicho, que não raro permaneciam cobertos com um pó branco, proveniente de restos de farinha de mandioca, escapados da concha de alumínio usada para medir cereais. 


Estes, dispostos em latões ou sacos ficavam lado a lado no fundo da venda. O percurso entre os latões e a balança na pesagem dos produtos, deixava escapar migalhas do que estava sendo pesado. Ao fim do dia milho, feijão, arroz e farinha se misturavam num alinhamento que mais lembrava um formigueiro em atividade.

A tal balança, autêntica peça de museu, compunha-se de dois pratos de cobre sobre uma armação de ferro. De um lado era colocado o peso pretendido e do outro a mercadoria a ser adquirida. Conforme fosse, ia-se adicionando ou retirando o produto, até atingir o peso desejado.  Descansando ao lado da balança, cuidadosamente arrumadas em uma caixinha de madeira, peças de ferro de forma cilíndrica e padronizadas de 1 a 5 quilos, além de outras de tamanho menor e com forma arredondada usadas na pesagem das “quartas”, medida com 250 gramas, muito utilizada na pesagem de fumo de rolo, brochas para sapateiro, pregos, chumbo par espingarda e algumas especiarias, completava o artefato.
         

         Todo o recinto por trás do balcão era tomado por prateleiras que partindo do piso projetavam-se até o teto. Em arrumação pouco ortodoxa, eram expostos produtos de todo tipo. Latas de biscoitos sortido, manteiga papagaio, pacotes de macarrão Jandaia, goiabada cascão, bananada e marmelada da marca Peixe, leite Ninho e aveia Quaker misturavam-se a soda cáustica, pregos em quilo, brochas para sapateiro, óleo Benedito e Sol levante, sabão em barra, cera Parquetina, gordura de coco Cristal, anil Ideal, óleo lustra móveis peroba, sal, açúcar refinado e bruto, rapadura preta fabricada nos engenhos de Ceará-Mirim e as branquinhas, conhecidas como rapadura batida produzidas em Japecanga, cerveja Brahama e Antártica, as únicas existentes na época, guaraná Antártica, Dore, Jade, Leda, Crusch, Grapette e Fratellivita, breu, fósforo marca Olho ainda com a caixa feita com lascas de madeira, palito de dente, manga de chaminé, camisa para lâmpada Coleman e lampião Aladim, marços de vela usadas nas noites em que a Companhia Força e Luz não funcionava, no pagamento de promessas aos santos de devoção ou mesmo nas madrugadas das sextas-feiras evocando a proteção de tranca-ruas e orixás.

As garrafas de aguardente como Pitu, Serra Grande, Murim, Olho d’água, Caranguejo e Chica Boa ficavam enfileiradas na principal prateleira para a apreciação e o desejo dos clientes. Botijões de vinho Raposa e Sangue de Boi completavam a área reservada a bebidas. Num cantinho bem discreto, se é que naquele ambiente isso fosse possível, podiam-se ver ainda alguns produtos farmacológicos muito utilizados pelas donas de casa no cuidado com a saúde dos filhos: emulsão de Scott, leite de magnésio de Phillips, biotônico Fontoura e finalmente Sanarina, a maravilha do lar.

        














                         








































 Numa mesa de centro bolos diversos vendidos por unidade e em talhadas, além de raiva, brote seco e doce, pacotes de bolachas, alfinim, biscoito de polvilho, cocada, sequilho, puxa-puxa, broa de milho, fuba doce ou paçoquinha, cocada de amendoim popularmente chamada de quebra-queixo, soda preta feita com erva doce etc.. Em maior destaque, um confeiteiro/expositor de vidro com oito compartimentos, quatro em baixo e quatro em cima, deixava a mostra à medida que giravam sob os olhares desejosos das crianças, pirulitos kibom, confeitos (balas) de mel, hortelã e sortidos, chicletes de bola ping-pong, torrão, buzi, chocolates sonho de valsa e diamante negro, drops dulcora, chiclete adams, pastilhas de hortelã e outras iguarias para o deleite da garotada. Em outra mesa mais para a esquerda, frutas sazonais e ainda banana prata, naquela época ainda existia a verdadeira, nanica e de leite, laranja Bahia, limão e coco seco, também faziam parte dos itens oferecidos pelo empório...