terça-feira, 3 de abril de 2012

CENAS URBANAS - Crianças Invisíveis

O Tráfego fluia normalmente.
Os veículos desfilam imponentes. A paisagem se descortina generosa. Os mundos se dividem nos limites dos vidros que abrem e fecham automaticamente ao leve toque dos motoristas. Lá fora um calor escaldante exaure as pessoas. Ali dentro uma amena temperatura aconchega o ambiente.

O sinal fecha. Rangidos de freios ecoam no ar. Como surgidos do nada, um pequeno exército de pessoas muda a paisagem. São vendedores ambulantes, mendigos, aleijados arrastando-se no asfalto, crianças famintas que mal balbuciam um pedido ininteligível de uma moeda, velhos e suas mãos tremulando no vazio, malabaristas e acrobatas que disputam a atenção e alguns trocados dos motoristas e passageiros.

Os dois mundos se encontram. Perplexidade e indiferença são sentimentos conflitantes e a ação, um ato constrito. O “levantar” dos vidros dos luxuosos carros substituem os limites da humanidade. Os olhos cravados no semáforo inibem, propositalmente, o contraste do momento.

O sinal abre. Tudo se movimenta e os mundos voltam a se separar. Pelo retrovisor, o olhar faminto da criança parece distante. Apenas parece, pois, num passe de mágica, no próximo sinal, a cena se repete. Como poderia aquela criança está aqui novamente. Não, ela não está! É outra criança. São outras crianças espalhadas por todos os semáforos das ricas avenidas da cidade. A pobreza não tem várias faces, semblantes diferentes. Todas parecem miseráveis, sujas, abandonadas, iguais. Todas são iguais em suas carências, em sua ânsia desesperada de misericórdia, em seus mudos lamentos.

O sinal abre. E reabre. E, em cada um deles, todos os dias, as muitas cenas urbanas se repetem no contraste das desigualdades.

O tempo passa. Sinais abrem e fecham sem parar. As distâncias entre os mudos: pobre e rico, aumentam sem parar.

Certo dia, em um dos muitos semáforos do seu caminho habitual, aquele indiferente motorista se depara com uma pequena aglomeração em torno de um cadáver postado na pista. A polícia algemara um jovem, quase criança. O motorista olhou com um pouco mais de atenção e deparou-se com um rosto conhecido. Indignado pensou:

- Meus Deus, era um daqueles garotos que mendigavam no semáforo da avenida Roberto Freire, há tão pouco tempo. Nunca mais o tinha visto. Que marginal, como pode a maldade humana chegar a esse ponto. Acabar com a vida de alguém sem qualquer motivo. Ainda bem que eu nunca me dispus a ajudar a nenhum deles.
O corpo jazia inerte.

Logo aquela vida seria apenas um desenho no asfalto.

Para aquele jovem, preso e algemado, a vida sempre fora um desenho, um mal acabado esboço colorido com as frustrantes tintas dos descasos e desmandos do poder constituído e da indiferença social. No meio da pequena multidão, alguém mais exaltado, falava de dignidade humana.

Imagine, alguém, repentinamente, lembrar da dignidade humana como se ela fosse apenas uma palavra.  E como falamos em dignidade humana. Mas, o que é dignidade humana?

(Cena Urbana, texto de autoria de Adauto José de Carvalho Filho, Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil Aposentado, Bacharel em Direito, escritor e poeta)