segunda-feira, 5 de setembro de 2011

DO LIVRO "A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS"

Morre o mestre Francisquinho


Em 1939, chegou a Praia da Pipa, vindo do norte, mais precisamente da Praia de Galinhos-RN, Francisco Caetano do Nascimento, mais conhecido por Francisquinho. Aos 16 anos de idade, o jovem pescador veio acompanhando seu tio, mestre de um barco, para uma temporada de pesca da albacora. A Pipa vinha se tornando famosa pela grande quantidade de peixes que se capturavam em suas águas, atraindo pescadores de várias praias do nosso estado e até mesmo de outros vizinhos, como Paraíba e Ceará.
Ao retornar para Galinhos, após o final da safra de albacora, Francisquinho informou a sua mãe que tinha gostado muito do lugar e que voltaria para morar. Então, no mesmo ano, o adolescente chegou a Pipa e, dessa vez, para ficar.
No início, começou a pescar em barcos de outras pessoas e, como já entendia um pouco da carpintaria naval, aventurou-se no conserto de botes. Em Galinhos, onde morava, costumava realizar pequenos consertos em embarcações que chegavam avariadas. Posteriormente, veio a se tornar o maior carpinteiro naval das praias do Litoral Sul, como são conhecidas as praias que se situam à direita da cidade de Natal.
Anos depois, Francisquinho conheceu a viúva Maria da Conceição Borges e com ela se casou. Dessa união tiveram cinco filhos, sendo dois homens, três mulheres e um sexto filho que foi adotado.


Os dois primeiros botes que construiu foram: “Taubaté” e “Baluarte”. A partir daí, até o último bote construído, “Malembá II”, foram mais de quinhentas embarcações, entre botes a pano, a motor e jangadas de compensado naval. Eu, juntamente com meu irmão, Dante, tivemos a oportunidade de, em 2004, ter uma dessas jangadas construída por ele.

O Malembá II, a última e maior embarcação que construiu, tinha 16,5m x 6,5m e destinava-se ao transporte de turistas em passeios pelas praias do norte. Foi projetado para levar 150 passageiros, em dois andares.
O proprietário desta embarcação dizia que, se por acaso, não desse o resultado esperado com os passeios turísticos, o barco seria destinado ao transporte de cargas para a ilha de Fernando de Noronha. Fui informado que se encontra no Norte, na praia de Galinhos... Fazendo o quê? Não sei.

MALEMBA II

Por muitos anos, o estaleiro de Francisquinho funcionou na Praia da Pipa, próximo à casa onde morava, na rua de cima. Com o tempo e a fama de bom construtor, aqui chegavam, de várias regiões, pessoas interessadas em contratar a construção de barcos no estaleiro do mestre. Essa fama perdurou enquanto esteve à frente da administração do seu estaleiro.
No início, a construção de um bote levava muitos dias, pois faltavam ferramentas e havia a dificuldade em conseguir a principal matéria prima: a madeira. As árvores eram retiradas das matas que ficavam a uma boa distância da praia. Dependendo da sua utilização, elas podiam ser cortadas de maneira bastante rudimentar.
Este material era transportado em lombo de animais ou na cabeça dos homens. O machado era utilizado para derrubar a árvore escolhida e depois dois homens operavam um grande serrote para abrir a madeira em pranchas que mediam três polegadas de espessura. Levavam-se dias para transformar em pranchas uma árvore de bom porte. Abertas em forma de pranchas ou moldadas em “cavernas”, as peças em forma de “U”, que juntamente com a quilha formam o esqueleto do bote, muitas vezes eram lavradas na própria mata. Quando transportadas para o estaleiro, já estavam no ponto de acabamento. O processo era concluído com a ajuda de plainas e enxós. O trabalho era penoso. Conseguiam moldar peças enormes de madeira bruta em robustas “cavernas”, dando-lhes as formas necessárias, utilizando apenas o machado e a enxó.
Para armar o bote era preciso primeiro situar a quilha. Depois a roda de proa, a espinha e em seguida a colocação do cavername. Após a colocação das “cavernas”, seguia o terço de proa e o terço de popa. O próximo passo era “envedubar” o barco, ou seja, dar a forma que vai ficar depois de pronto. Em seguida, vinha o “enlatamento” – operação que consiste em pregar barrotes, ligando as duas extremidades das “cavernas”, em preparação para o tabuamento do convés. Essa operação era realizada logo que aprontavam as escotilhas de porão. Somente na fixação das tábuas do convés é que utilizavam pregos. Nas outras operações, como também no tabuamento dos costados, eram utilizadas cavilhas. Em seguida, eram feitos as bordas e os corrimãos de bordas. A última operação antes da pintura era o calafetamento, que é a vedação do barco. Para isso eram utilizadas estopas feitas com a casca da sapucaia.

Procurei aqui, da melhor forma que me foi possível, descrever o que foi, para o mestre Francisquinho, a paixão de toda sua vida: construir barcos. Para exercer tão nobre profissão teve que passar por muitos desafios que lhe foram impostos durante o tempo em que pôde manobrar com maestria as ferramentas que lhe permitiam, usando somente a intuição e a vontade de vencer desafios. Ao longo de sua vida, o mestre produziu verdadeiras obras de arte da nossa construção naval, de pequeno porte.
No último dia 22 de maio, descansou para sempre o mestre Francisquinho. Acometido de vários derrames, viveu recluso os últimos anos em seu sítio, nos arredores da Pipa. Tinha perdido a condição de falar e andava com muita dificuldade. Mas, quando encontrava os amigos, seus olhos miúdos brilhavam de satisfação e felicidade, diziam o que sua voz, levada pela doença, já não lhe permitia dizer. Morreu o homem, o profissional, o mestre, o amigo, o religioso e o pai de família que soube criar os seus filhos com dignidade. Teve ainda, junto com sua esposa, espaço em seu coração para o sublime ato de amor ao próximo, a adoção. Descanse em paz, amigo.

Natal, junho de 2009.