sexta-feira, 14 de maio de 2010

A PRAIA DA PIPA DOS MEUS AVÓS

ORMUZ BARBALHO SIMONETTI (Presidente do Instituto Norte-Riograndense de Genealogia-INRG, membro da UBE-RN e do IHGRN)
www.ormuzsimonetti@yahoo.com.br

PUBLICADA EM “O JORNALDEHOJE” EDIÇÃO DE 14 DE MAIO DE 2010.

Pipa, personagens que marcaram sua história I
De tempos em tempo, “encalha” na praia da Pipa criaturas que terminam por fazer parte de sua história. Na década de 70 costumava chegar à Pipa, surfistas que vinham de diversos lugares do Brasil, atraídos por suas ótimas ondas para a prática do esporte. Ao contrário dos muitos que apareciam por aqui e logo partia, um deles resolveu ficar por mais tempo. Certa vez, um nativo precisou tomar uma injeção e não havia quem a aplicasse. Logo foi surpreendido pelo tal surfista, que dizendo ter essa habilidade, executou a tarefa sem maiores dificuldades. A partir desse dia ganhou o pitoresco apelido de “Farmácia”.

Morou na Pipa por vários anos. Como não tinha profissão, fazia um pouco de tudo para sobreviver. Certo dia resolveu que mudaria de vida e escolheu para essa mudança a nobre profissão de pescador. Por entender que antes de tudo, precisava adquirir um bote, foi bater as portas do BNCC - Banco Nacional de Crédito Cooperativo. Mesmo não tendo nenhum conhecimento da arte da pesca, nem nada que o ligasse a atividade, e pasmem com aquela aparência de “menino do Rio”, conseguiu sem maiores problemas o financiamento para construir na Pipa, uma enorme embarcação movia à vela e a motor, novidade para a época.

Contratou imediatamente o estaleiro do mestre Francisquinho para a construção. Ninguém acreditava que aquele sofista que passava seus dias “pegando ondas” ou mesmo “jiboiando” à sombra dos coqueiros, iria mudar de vida e ganhar o seu sustento com o trabalho duro dos que pescam em alto mar. Só quem acreditou nesses bons propósitos foi o gerente do BNCC.

Lembro bem o dia em que o bote foi colocado n’água. Feito pelo próprio Francisquinho era tão grande que teve dificuldade para chegar até a praia. Foram preciso mais de cinqüenta homens e um trator para arrastá-lo do estaleiro, que ficava na rua de cima, até a beira da praia. Foi uma verdadeira festa. Amarraram aquela enorme estrutura de madeira com grossos cabos feitos de agave - sisal – terminando com duas filas de homens que ao comando de mestre Francisquinho, puxavam o barco por entre ruas estreitas em direção ao mar. Nessa época, como ainda não havia calçamento, as ruas eram cobertas com palhas de coqueiros e paus para facilitar o deslizamento da quilha na areia. Parecia cena de filme do antigo império romano, quando hordas de escravos, sob a chibata dos algozes, arrastavam aquelas enormes estruturas. Na Pipa, a simbólica chibata era substituída por algumas garrafas de cachaça, que a cada parada para descanso, eram prontamente esvaziadas.

Nesse transporte, a maior dificuldade era quando chegava à ladeira que descia até a praia. Todas as forças agiam no sentido contrário impedindo que o barco tomasse velocidade mais que o estritamente necessário e fugisse do controle dos homens. Nesse dia, ao chegar à praia, o barco ficou estacionado nas areias, vizinho a minha casa, esperando que a maré enchesse, para poder ser introduzido na água.

Pescou por uns dois meses no mar da Pipa, com a tripulação formada por nativos. Certo dia o “mestre Farmácia” viajou em busca de peixes maiores em mares distantes e nunca mais voltou.

O Banco, naturalmente, não recebeu nenhuma das prestações programadas e o gerente ficou literalmente “a ver navios”. Certo dia o tal gerente recebeu uma ligação da Guiana Francesa. Do outro lado da linha Farmácia informava que havia se deslocado para aquela região em busca de trabalho que lhe rendesse mais que a pesca. A embarcação estava sendo utilizada para o transporte de cargas e mercadorias e que logo regressaria para liquidar o débito. O barco nunca retornou e a dívida, como sempre, foi paga pelo contribuinte.

Outro encalhe da Pipa foi o índio potiguar apelidado de “Come Fogo”. No início dos anos 80 chegou a essa comunidade um circo mambembe. Pobre, como a grande maioria dos circos que se apresentam nessas pequenas comunidades, tinha sua lona rasgado, poucas tábuas no “poleiro” e alguns artistas. O dono do circo além de anunciar os “espetáculos”, também fazia um número no trapézio. Tinha um mágico que tirava coelhos e pombos de sua surrada cartola. Dois palhaços que em seu número encenavam brigas que sempre terminava com um deles ao chão, depois de atingido por certeira bofetada. Esses palhaços além de suas apresentações também tinham a função de, ao chegar às comunidades, anunciarem o espetáculo. A frente de um bando de crianças e vestidos a caráter gritavam: Hoje tem espetáculo? E as crianças em couro respondiam aos gritos: Tem sim senhor!!! Aqueles que mais gritassem ganhariam logo mais à noite, uma entrada grátis. E os palhaços continuavam: Eu vou ali e volto já... E as crianças aos gritos respondiam: Vou comer maracujá. Pompeu, Pompeu, tua mãe morreu...

Completava o pitoresco elenco um índio que “comia fogo”. O seu bem elaborado número, consistia em borrifar com sua enorme boca, porções de querosene em direção a chama de uma velha lamparina, provocando enormes labaredas de fogo que eram dirigidas para a excitada platéia.

Um dia o circo partiu em sua difícil e constante luta pela sobrevivência, levando alegria as pobres cidadezinhas do interior, mas perdeu para a Pipa sua principal atração: o índio Come Fogo. Ficou conhecido por essa alcunha, pois nunca soubemos seu verdadeiro nome. Dizia ter gostado do lugar, da sua gente, do mar e principalmente da cachaça que os “amigos” lhe ofereciam de graça.

Era um homem alto de físico avantajado, pele morena e praticamente sem barba, sinal bem característico de nossos indígenas. Tinha uma força descomunal. Certa vez, praticamente sozinho, conseguiu desatolar uma camioneta que ficara presa nas areias em frente à igreja, na época sem calçamento. Nasceu em uma tribo de índios Potiguares, possivelmente na Baía da Traição, no nosso vizinho estado da Paraíba. Por aqui ficou alguns anos. Fazia pequenos serviços para ganhar seu sustento. Entretanto o vício pela bebida foi mais forte e aos poucos reduzindo a trapos aquele homem que era admirado pela sua aparência e força física.

Nos últimos anos já não conseguia mais trabalho, pois passava a maior parte do dia embriagado. Era triste vê-lo na sarjeta submetido à indiferença daqueles que outrora foram seus amigos e companheiros de copo. Aqueles que antes lhe franqueavam gratuitamente bebidas, nos últimos tempos já lhe negavam até mesmo restos de comida.

Então certo dia, para seu descanso, foi encontrado morto em uma casa abandonada onde se refugiava à noite pra dormir. Morreu consumido pelo álcool e certamente pelo abandono. Seu corpo foi sepultado em uma cova anônima no cemitério local.

Pipa, março/2010.